Benefícios fiscais ilimitados escondem privilégios

Publicado em: 20 mar 2019

*Por Aline Pereira Damásio 

Campo Grande (MS) – necessidade de uma reforma tributária é cada vez mais urgente e a revisão das renúncias fiscais é a bola da vez. A reforma da tributação tanto das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas é cada vez mais demandada pela sociedade brasileira, sobretudo quando se trata do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF), em que parcela dos cidadãos, mais ricos, não tem qualquer ônus, fazendo com que o peso da carga tributária recaia sobre contribuintes com menor capacidade contributiva. 

Segundo estudo realizado pelo Sindifisco Nacional (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), a tabela de apuração do imposto de renda acumula uma defasagem de 95,4% desde 1996. Hoje um trabalhador que ganha acima de R$1.903,98, cerca de 1,9 salários mínimos, já tem a obrigação de pagar IRPF. 

Para uma sociedade que busca ideais de igualdade e justiça social e que tem como objetivos fundamentais a redução das diferenças sociais e a redistribuição de renda, o sistema tributário brasileiro segue em sentido oposto. 

Planejamentos tributários de grandes empresas e até mesmo de pessoas físicas fazem com que o empregado pague mais imposto de renda que seu empregador como pessoa física. Exemplo clássico desse planejamento tributário é a pejotização, bem ressaltada pelo Excelentíssimo Presidente Jair Bolsonaro ainda durante a campanha eleitoral. 

O país do vale tudo para não pagar impostos, ainda conta com uma legislação tributária favorável nesse sentido. O sistema jurídico brasileiro está abarrotado de processos na área tributária, que abrigam teses jurídicas, muitas já pacificadas, fruto do afã que tem cada indivíduo em se livrar dos malfadados impostos. 

Países desenvolvidos como Suécia, Dinamarca e Finlândia possuem cidadãos conscientes, tanto no que tange ao pagamento de impostos, quanto em relação à fiscalização da aplicação dos recursos públicos, e sabem que se uma pessoa deixa de pagar seu imposto devido, o peso recairá sobre outros que, muitas vezes, possuem menos recursos e, também, menos arcabouços jurídicos para deixar de pagar impostos dentro da lei. 

Nesses países, cada contribuinte fiscaliza o outro e todos fiscalizam o poder público. Lá há também punibilidade, outro requisito essencial para se criar uma sociedade mais justa. 

Diariamente a grande mídia internacional noticia prisões como, por exemplo, de grandes empresários e de jogadores de futebol, todos por crime de sonegação. Sim, sonegação também é crime no Brasil. Mas por que será que não ouvimos notícias no mesmo sentido por aqui? Porque ainda temos uma legislação branda nessa área. Hoje o sonegador paga o débito por meio de um parcelamento em incontáveis vezes e se livra de penas mais duras. 

Os chamados Refis já fazem parte do planejamento das empresas. Por que pagar imposto agora se posso postergar o pagamento e depois parcelá-lo em infinitas vezes? O sonegador autuado pelo fisco ainda usufrui das benesses legislativas que anulam boa parte das multas lançadas. É nesse cenário que o bom pagador não vê estímulo para manter seus impostos em dia, uma vez que vê a concorrência sonegadora com maior poder de fogo. 

Nessa toada entram as isenções fiscais. Criadas pelos governos para estimular determinadas atividades econômicas ou para beneficiar segmentos da sociedade mais carentes e necessitados, essas renúncias fiscais estão tornando-se cada vez mais sinônimo de injustiças fiscais, produzindo verdadeiros privilégios no emaranhado jurídico. 

Nesse contexto, há a isenção para portadores de moléstia grave. Antes que o leitor argumente sobre a legitimidade do benefício, é preciso separar o joio do trigo. Senão vejamos. Conforme estudo divulgado pela Receita Federal- Demonstrativo dos Gastos Tributários Bases Efetivas – 2015 – Série 2013 a 2018, o montante estimado da renúncia fiscal de Imposto de Renda de Pessoas Físicas no ano-calendário 2015 é da ordem de R$10,5 bilhões. Para 2018, o montante estimado pela Receita é de R$ 12,8 bilhões. 

Em outro estudo divulgado pelo CETAD – Grandes Números IRPF Exercício 2017, o montante do rendimento isento por moléstia grave chega a R$47,63 bilhões de reais, representando 6,2% do total de rendimentos isentos declarados na DIRPF 2017 e ocupando a sexta posição entre os maiores valores de rendimentos isentos declarados. 

Se verificarmos os dados extraídos do mesmo relatório CETAD Receita Federal – Grandes Números do IRPF –no período de 2007 a 2016 – houve um crescimento real acumulado dos rendimentos isentos por moléstia grave de cerca de 105,68%, em valores atualizados pelo INPC. Em 2016, os rendimentos isentos por moléstia grave representaram 6,2% do total dos rendimentos isentos declarados à Receita Federal, enquanto o número de contribuintes isentos por moléstia grave representaram 1,2 % de um total de 28 milhões de declarantes. 

O leitor mais atento pode pensar que a quantidade de doentes aumentou absurdamente no Brasil e que esses números refletem essa realidade. Entretanto, dentre os fatores que causaram esse aumento está a ampliação do benefício decorrente da jurisprudência dos tribunais, gerando como consequência a concessão de benefícios ilimitados a quem não tem qualquer ônus com a doença, fato que corroborou para o surgimento de planejamentos tributários. 

A grande diferença entre benefícios fiscais está no número de contribuintes beneficiados em relação ao montante da renúncia fiscal, que pode ser aplicável a milhões, milhares ou centenas de contribuintes. Assim, para julgar corretamente um benefício é necessário verificar o perfil dos reais beneficiários. Enquanto não se coloca uma lupa nessas isenções, o sistema tributário brasileiro segue produzindo injustiças fiscais. A diferença entre o montante isento e o número de contribuintes beneficiados já é um forte indício de que há uma grande distorção na isenção por moléstia grave. 

Ademais, a isenção criada com o objetivo de garantir recursos para o custeio do tratamento da doença tem, hoje, muitos beneficiários que não arcam com qualquer custo ou, ainda, tem seus custos plenamente cobertos pelo SUS. Essa justificativa é defendida, inclusive, pelo poder judiciário “… uma vez que a isenção do imposto de renda, em favor dos inativos portadores de moléstia grave, tem como objetivo diminuir o sacrifício do aposentado, aliviando os encargos financeiros relativos ao tratamento médico”. (REsp 1706816/RJ, DJe 18/12/2017) 

Nesse contexto, o avanço da medicina e a ausência de atualização legislativa têm provocado distorções no benefício, à medida que alguns tipos de doenças classificadas como graves no ano de edição da Lei n° 7713/1988 já não se caracterizam mais como moléstias graves, mas que, devido à interpretação literal da legislação, fazem com que o portador seja classificado como isento mesmo que não tenha qualquer ônus com a doença. 

A revisão da legislação sobre o tema é urgente. É imprescindível criar-se limites para que isenções como essa sejam concedidas sem provocar distorções ou mais regressividade no sistema tributário brasileiro. 

Isenções limitadas são exemplos já utilizados em democracias como a dos Estados Unidos, Espanha e Portugal. Criar um limite para essas isenções como já ocorrem com as contribuições previdenciárias e com a parcela de rendimentos para contribuintes acima de 65 anos é a melhor forma de se buscar mais justiça fiscal, sem prejudicar quem realmente precisa da isenção fiscal. 

Desse modo, o sistema tributário se torna menos regressivo e mais justo, evitando que poucos sejam beneficiários de grandes fortunas em renúncias fiscais e que os que realmente necessitam não fiquem desamparados. Conceder isenção fiscal ilimitada por moléstia grave aos mais ricos faz com que os mais pobres tenham que assumir esse ônus fiscal. Alguém terá que pagar a conta. 

O dia em que toda a sociedade se conscientizar de que todos devem contribuir na medida de sua capacidade contributiva, o Brasil será um país mais justo e a carga tributária será menor para todos. 

A pergunta que fica para a sociedade brasileira é: Entre um doente rico e um doente pobre com a mesma doença, quem a legislação brasileira beneficia mais, o rico ou o pobre? E quem o Estado deveria ajudar mais? 

 *Aline Pereira Damásio é Auditora-Fiscal da Receita Federal e administradora.

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