Interesses atrapalham reforma de impostos no Brasil

Publicado em: 23 jul 2020

Por Cleveland Prates

Campo Grande (MS) – Mudei para Brasília em 1999 para trabalhar na discussão da reforma tributária da época. De lá para cá passaram-se mais de 20 anos e este assunto ainda não foi resolvido. Ao contrário, o nosso sistema só piorou e a carga tributária se elevou. Tenho para mim que muito desta ineficiência está associada à ausência de uma discussão prévia de que governo queremos (de quais as funções do Estado) e do claro entendimento da sociedade sobre o poder de certos lobbies em Brasília.

Não é incomum encontrarmos várias propostas em tramitação no legislativo que envolvem reduções ou isenções fiscais para determinados grupos de empresários e profissionais liberais. Também é fácil identificar propostas de fornecimento de subsídios, transferência de recursos para certos setores da sociedade ou mesmo vantagens desmedidas para certas corporações públicas. O grande problema é que as benesses concedidas pelos políticos para seus grupos mais próximos levaram o país ao longo do tempo a ter que criar novos impostos. A maioria extremamente ineficiente, para cobrir os rombos gerados nas contas públicas. Hoje temos uma carga tributária digna de países desenvolvidos (a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OOCDE, por exemplo, é de 34%), mas com um serviço público com a qualidade no mínimo questionável. 

Mas afinal, qual é a reforma tributária que precisamos? Para responder a esta pergunta, é fundamental conhecer um pouco sobre “Teoria da Tributação Ótima” e ter em mente que, por definição, todo imposto gera ineficiência no domínio econômico. Isto acontece porque a presença de imposto implica mudança de incentivos no comportamento de consumidores e empresários, além de gerar perda de eficiência alocativa (redução na capacidade da sociedade gerar renda). É neste sentido que a discussão inicial sobre qual o Estado que queremos é de fundamental importância. 

Quanto mais atribuições lhe dermos, maior será o total de impostos que deverá ser arrecadado e, consequentemente, mais ineficiência introduziremos na economia. Assumindo que tenhamos superado a discussão de qual é o Estado que queremos, existem alguns princípios básicos que, se minimamente observados, poderão melhorar o ambiente econômico e reduzir a desigualdade no país. O primeiro deles é o Princípio da Neutralidade, que sugere que os tributos devem ser constituídos procurando minimizar sua interferência nas decisões dos agentes econômicos. Por exemplo, na medida do possível, devem ser evitados diferentes alíquotas para a venda de diferentes produtos, inclusive para evitar a criação de assimetrias competitivas nos mercados.  

O segundo princípio é o da Equidade, cujo norte é criar uma distribuição mais justa de recursos na sociedade, sem ônus excessivo entre os indivíduos. Sob o ponto de vista prático, este princípio pode ser aplicado a partir da capacidade de pagamento dos agentes econômicos, ou seja, quem ganha mais deve pagar mais. Ainda seguindo esta lógica, seria mais razoável “calibrar” a maior parte da arrecadação de impostos sobre a renda, e não sobre o consumo. Isto porque os pobres pagam proporcionalmente mais da sua renda ao consumir do que as classes mais abastadas e, portanto, proporcionalmente mais imposto. Este aspecto é bastante relevante no caso brasileiro, na medida em que observamos que uma boa parte da arrecadação brasileira é realizada via impostos que incidem sobre o consumo. O terceiro princípio é o da Progressividade e sugere que a alíquota de tributação deva se elevar de acordo com o aumento do nível de renda.

A grande questão aqui é criar um modelo que, ao mesmo tempo em que arrecade mais de quem ganhe mais, não reduza a disposição do “pagador do imposto” a trabalhar ou a produzir. Ademais, deve-se ter o cuidado de não serem criadas alíquotas que induzam proprietários de poupança no país a retira-la para locais mais amigáveis ao capital. De toda forma, um imposto progressivo pode e deve ser utilizado para obtenção de maior equidade no país.

Finalmente, o quarto é Princípio da Simplicidade que deve ser visto tanto sob o prisma público quanto privado. Na esfera pública, deve ser de fácil arrecadação, e não implicar em processo de fiscalização que represente custos administrativos elevados para o governo. De outra parte, ele também deverá ser de fácil entendimento para quem o paga, não acarretando ainda custos elevados para o contribuinte. 

É claro que em alguns momentos esses princípios podem colidir entre si. Por exemplo, a antiga CPMF era extremante simples, mas também muito regressivo. Neste sentido, a escolha sempre poderá envolver um trade offe o legislador terá que arbitrar entre o que é o mais importante para cada caso, considerando os incentivos gerados e o impacto sobre a geração e distribuição de renda.

Há que se destacar ainda que a escolha do modelo tributário sempre envolverá ganhadores e perdedores, o que torna uma verdadeira e ampla Reforma Tributária mais difícil e menos provável de ocorrer; principalmente no caso brasileiro, em que os lobbies de determinados grupos da sociedade são tão fortes no Congresso. Talvez por isso a proposta do economista Bernardo Appy, que está em tramitação na Câmara dos Deputados, e do próprio governo entregue nesta terça-feira tenham sido tão limitadas e procurado observar apenas em alguma medida os princípios da Simplicidade e da Neutralidade, por meio da unificação de impostos.

O problema é que ao fazermos isso deixamos de lado o principal problema do país, que é a distribuição desigual de renda. Ademais, tanto em um caso como o outro, o que se percebe é um deslocamento da incidência tributária da indústria para o setor de serviços, cujo resultado mais provável será uma nova elevação da Carga Tributária. E a depender ainda do que o governo decida a respeito da criação do imposto sobre dividendos e sobre movimentação financeira, é possível que haja uma queda na renda gerada no setor terciário da economia. Resta saber se o resto da economia terá força para compensar essa perda.

Cleveland Prates é economista  especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP. Foi Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e secretário-adjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.

  • Compartilhar:
  • Facebook
  • Facebook
  • Facebook