Mais desequilíbrio na relação Fisco-contribuinte

Publicado em: 18 jan 2021

Por Gustavo Amorim

Campo Grande (MS) – Não faz muito tempo que, ao final de uma fiscalização tributária, é emitida juntamente com a cobrança uma representação fiscal para fins penais. A eficácia desta, por súmula vinculante do STF, deve ficar sobrestada até o final do processo administrativo tributário. Mantida a cobrança na esfera administrativa, está autorizado o ajuizamento de ação penal pelo seu titular, o Ministério Público. Porém, as discussões criminais subsequentes normalmente ficam adstritas à autoria (quem praticou o crime), porque a materialidade em si (se houve crime contra a ordem tributária) se resume à manutenção ou não do crédito tributário na esfera tributária.

Continuando essa mesma onda de criminalização do contribuinte, recentemente o STF concluiu que é crime declarar e não pagar o ICMS se houver contumácia e um dolo específico de não pagar o tributo, dele se apropriando. Resta em discussão no referido leading case, em que tenho a honra de atuar junto a grandes tributaristas e criminalistas, se o critério fixado deve ser modulado temporalmente. E há uma tendência de sobrevir a modulação, já que o próprio relator do caso conclamou uma audiência pública para afastar suas dúvidas sobre a matéria. Se um ministro do STF tem dúvida sobre a tipicidade da prática, é evidente que o contribuinte não pode ser punido. A certeza de violação à lei é requisito indispensável à aplicação da lei penal. É um conceito tão básico que a rigor não precisaria de uma manifestação suprema.

Hoje — e é esse o motivo do texto —, o Sindifisco Nacional traz ao debate dessa conturbada relação Fisco-contribuinte uma proposta de mudança legislativa que procura modificar os critérios para condenação penal nas questões tributárias. Até então, o parcelamento do crédito tributário realizado antes do recebimento da denúncia suspende a ação penal. E o pagamento, à vista ou através da quitação do parcelamento, extingue o crédito tributário e a punibilidade penal. Pela nova proposta, o pagamento não evitaria a condenação penal. Praticada a infração à lei tributária, só restaria ao contribuinte o cumprimento de pena.

Essa proposta é só mais uma batalha da tão desequilibrada guerra que constitui a relação Fisco-contribuinte. Há dois pesos e duas medidas. Para o contribuinte que deixa de seguir a lei tributária, já vale hoje a dura lei penal. As condenações criminais são múltiplas, já que nem sempre o contribuinte possui capacidade de quitar o tributo. Mas, para o Estado, através do seu agente fiscal, quando este contraria a lei tributária, formulando cobrança evidentemente indevida, como funciona? Ocorre a aplicação da lei penal vigente? Qual a penalidade aplicável e quais as penalidades já foram efetivamente aplicadas em casos concretos? Para o total desequilíbrio da relação, a lei penal só alcança efetivamente o contribuinte.

Ocorre crime se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza. Para esse caso o Código Penal traz a pena de reclusão. O problema, contudo, é que esse dispositivo legal não é aplicado. Não se tem notícias, até hoje, de que pelo menos um funcionário público tenha sido condenado pelo crime de excesso de exação, enquanto todos os que militam no Direito Tributário, empresários, contadores ou advogados sabem que a cobrança indevida de valores está muito longe de ser uma exceção. A lei simplesmente penal não é aplicada quando é contra o Estado.

Muitos alegarão que a fiscalização e os julgadores não têm como saber com precisão se aquela cobrança é devida ou indevida, que a matéria ainda não foi apreciada em definitivo, e que por isso não podem ser repreendidos administrativamente ou até mesmo condenados criminalmente. Mas por qual motivo essa mesma máxima não vale para o contribuinte?

Pode um contribuinte ser condenado criminalmente, por exemplo, por utilizar um determinado tipo de crédito que aguarda posição final do STF ou do STJ? Pode um contribuinte ser condenado por deixar de pagar determinado tributo que, embora ainda não avaliado pelas cortes superiores, teve sua cobrança afastada por significativas decisões judiciais de primeira instância ou de tribunais recursais? Evidentemente que não. E não pode justamente porque não há uma certeza de que aquela exação é absolutamente (in)devida.

Bem verdade que essa falta de certeza pode ser atribuída em primeiro lugar ao legislador, mas em última análise justamente ao STF e ao STJ. As oscilações da jurisprudência são tão significativas (e a incidência de IPI na simples revenda de produtos importados é um bom exemplo) que não trazem segurança interpretativa nem para o Fisco, nem para o contribuinte. Nem para aplicação da lei tributária, nem muito menos para aplicação da lei penal. Falta certeza do direito, falta imutabilidade dos conceitos de Direito Tributário reiteradamente elastecidos pelas decisões judiciais em benefício do Fisco. Sobre essa crítica, vamos dar um único exemplo: se eu vender uma mercadoria e não receber por ela, ainda assim tenho de pagar tributos. É evidente que essa exigência é desmedida, desproporcional, confiscatória e daí por diante, mas ainda assim não só é aceita como imposta pelos tribunais.

Toda essa problemática não significa que seja impossível aplicar a lei penal na relação Fisco-contribuinte, de um lado (contribuinte) ou do outro (fisco). É possível, sim. Para o contribuinte, é possível para a situação de omissão de receitas; é possível para a adulteração de documentos; assim como também é possível para aqueles casos em que há fraude, dolo ou simulação. Todas situações que certamente não se encaixam na hipótese de simples inadimplemento ou naquelas em que há controvérsia jurídica razoável. E, para o agente fiscal, também é possível, sim, sofrer punição penal, especialmente para aqueles que contrariam posições vinculantes da Receita Federal ou firmadas pela jurisprudência, hoje listadas de maneira objetiva no CPC (artigo 927), que basicamente se resumem aos chamados precedentes em matéria tributária (decisões em Adin, ADC, repercussão geral, recursos repetitivos, súmulas vinculantes, súmulas etc.).

Talvez a solução do problema passe pela simplificação da legislação tributária, de tal modo que seja tão simples calcular o montante devido quanto identificar a condenável prática de sonegação fiscal. Mas os movimentos legislativos nunca vão nesse sentido. O sistema tributário é feito de exceções criadas por cada um dos entes tributantes que, quando sobrepostas, tornam praticamente ininteligível aos operadores em geral. Em outras palavras, é tão complexo que na maioria dos casos deveria se afastar a presunção de que o contribuinte está ciente de suas obrigações e consequentemente de suas infrações à lei tributária, requisito indispensável à aplicação da lei penal.

A pergunta que fazemos como provocação deste artigo é simples: devemos endurecer o sistema penal-tributário ainda mais? Entendo que não, que já é suficientemente repressivo. Mas se a resposta for positiva, se o legislador entender que realmente deve afastar a possibilidade de regularização pelo pagamento, que aperfeiçoe juntamente com essa medida o Código Penal para tornar minimamente efetiva a punição daqueles que insistem em constituir ou manter cobranças contrárias aos precedentes tributários.

Em um cenário ideal de equilíbrio o contribuinte precisa saber que será penalizado quando descumprir a lei, assim como o Fisco precisa ter ao menos o temor de ser igualmente penalizado quando praticar ato da mesma gravidade. Em última análise, o endurecimento dos mecanismos penais tributários propostos pelo sindicato poderá prejudicar a própria atuação da fiscalização, ou alguém acredita que o contribuinte, emparedado e sem saída, ficará inerte? Certamente que não. Quem já viu um gato arisco sabe que quando acuado ele rapidamente se transforma em um leão.

Precisamos evoluir nessa relação, é um objetivo comum, mas com medidas que não aumentem — mas reduzam — o desequilíbrio na relação Fisco-contribuinte.

 

Gustavo Amorim é advogado, membro da Comissão Especial de Direito Tributário do CFOAB, membro fundador e atual presidente da Associação de Estudos Tributários do Estado de Santa Catarina (ASSET/SC) e professor da Escola Superior de Advocacia do Estado de Santa Catarina (ESA/SC).

 

 
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