Teto não se sustenta no financiamento da calamidade pública em 2021

Publicado em: 02 jun 2020

Campo Grande (MS) – Se considerarmos a Lei 13.979, de 6 de fevereiro deste ano, como marco inicial da resposta estatal brasileira à pandemia da Covid-19, lembraremos que estamos há quatro meses conscientes de que era necessário agir.

Sabemos desde fevereiro que a crise sanitária reclamava ação federativamente coordenada, gerencialmente célere e fiscalmente suficiente. Mas chegamos ao mês de junho com o patamar de mais de meio milhão de casos confirmados e de 30 mil mortes, sem que haja qualquer expectativa consistente de controle dessa marcha fúnebre.

Em número de mortes evitáveis, estamos apenas atrás dos EUA, da Inglaterra e da Itália.

A letargia e a insuficiência da resposta governamental são verificáveis a partir da baixa velocidade de execução orçamentária da União em favor do nosso Sistema Único de Saúde (vale reiterar o que José Roberto Afonso e eu alertamos aqui e aqui).

Até o final de maio, o Ministério da Saúde havia pago R$8,962 bilhões em face da dotação autorizada de R$34,498 bilhões na ação 21C0 (dados disponíveis aqui). Ou seja, mesmo com a escalada de contaminações e mortes, o governo federal efetivamente gastou apenas cerca de 1/4 do crédito extraordinário previsto para o enfrentamento sanitário da pandemia.

Em entrevista à Folha, Wilames Bezerra, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), bem acentuou que as “as constantes trocas de gestão geraram atraso em medidas que poderiam ser resolvidas”, já que:

“A instabilidade de gestão do governo federal cria uma dificuldade na ponta”, diz, citando como exemplo o atraso no lançamento de regras e financiamento de leitos para hospitais de campanha — o que só ocorreu na última semana.

“Precisamos de uma política mais definida no enfrentamento da pandemia. Muitas das coisas que acontecem agora deveriam estar acontecendo há 60 ou 90 dias.”

Tal avaliação acerca da morosa e frágil resposta federal não é privativa da dimensão sanitária da crise da Covid-19 e se estende também aos seus efeitos sociais e econômicos. A bem da verdade, a imperícia, a negligência e a imprudência da ação nacional brasileira tornaram mais oneroso o enfrentamento da crise em suas múltiplas dimensões.

Como já reconhecido desde janeiro pelo secretário municipal do Partido Comunista para Wuhan, na China, Ma Guoqiang, a resposta lenta agrava a pandemia e torna mais caras as soluções retardatárias.

Mesmo conscientes do exemplo chinês desde janeiro e a despeito de termos aprovado a Lei 13.979 em fevereiro, atrasamos e encarecemos as respostas governamentais necessárias ao enfrentamento da pandemia em nosso país. Acumulamos mortes evitáveis e não temos clareza sobre quando sairemos da crise. Ao desastre sanitário se soma a calamidade política brasileira, o que torna persistentes também nossas crises social e econômica.

Nem mesmo a recentíssima Lei Complementar 173/2020 aplaca o ódio que se espraia pelo federalismo fiscal brasileiro, como bem pontuado por Fernando Facury Scaff nesta coluna Contas à Vista. Esse caos aproveita ao curto prazismo eleitoral e reproduz uma guerra política decorrente da primazia do patrimonialismo.

Eis o contexto em que, neste começo de junho, faço questão de expor publicamente a antiga suspeita (que agora se tornou convicção) de que é insuficiente a estimativa do Decreto Legislativo 6, de 20 de março deste ano, sobre a duração da calamidade pública apenas até 31 de dezembro.

Até o envio do projeto de lei de orçamento anual pelo Executivo federal em 31 de agosto deste ano, sinceramente espero que todos tomemos consciência acerca da estreiteza do lapso temporal da calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional.

Considerando que o custo social, sanitário e econômico da postergação é muito alto, é preciso o quanto antes assumirmos que:

a pandemia da Covi-19 não estará sob controle no Brasil até o final de 2020 e

a persistência da situação de calamidade no próximo ano imporá mudanças tanto no teto de despesas primárias dado pela Emenda 95/2016; quanto no projeto de lei de diretrizes orçamentárias de 2021, que foi enviado pelo Executivo federal em 15 de abril, para que o Congresso o aprecie definitivamente até a meados de julho.

Isso ocorre, porque, no exercício financeiro seguinte, não se sustenta a solução amplamente adotada hoje de abertura de créditos extraordinários como rota excepcional de convivência com o Novo Regime Fiscal, porque não haverá a imprevisibilidade que lhes justifica a existência, na forma do art. 167, §3º da CF.

Por outro lado, o horizonte econômico indica severo risco de terminarmos o ano de 2020 em patamar deflacionário.

Considerando a impossibilidade do uso de créditos extraordinários em 2021 e a provável deflação em 2020, caminhamos rapidamente para o cenário de impossibilidade factual de persistência do teto dado pela Emenda 95/2016, como bem suscitado por Ribamar Oliveira.

Tecnicamente, ideal seria que a Emenda Constitucional 106/2020 — também conhecida como Emenda do “Orçamento de Guerra” — já tivesse alterado a Emenda 95/2016, para ajustar o teto à realidade pandêmica em que vivemos. Mas o dogmatismo fiscal interditou nosso debate sistêmico e prejudicou a capacidade de reflexão sobre outras frentes plurais de análise.

Ora, tratar o teto como tabu político ou regra imutável prejudica a construção de soluções para a profunda crise em que vivemos. Tal narrativa acerca da suposta imutabilidade da Emenda 95/2016 é juridicamente falsa, sobretudo porque ela já foi alterada pela Emenda 102/2019. Ou seja, já houve ampliação do rol de exceções ao teto global federal de despesas primárias, por meio do acréscimo do inciso V ao art. 107, §6º do ADCT, para permitir a repartição federativa dos recursos oriundos da cessão onerosa do pré-sal licitada no final do ano passado.

Dolorosamente, a realidade tem desvendado o quão iníquas e equivocadas são as teses de que o teto seria politicamente intocável e que somente caberia fazer ajuste fiscal sobre as despesas primárias no Brasil. Tal dogmatismo enviesado é algo que André Lara Resende tem criticado como verdadeira “impostura” que coloca em risco nossa democracia (como se pode ler aqui e aqui).

Insistir em ajuste fiscal exclusivamente incidente sobre despesas primárias é oferecer uma resposta francamente desproporcional e, portanto, inconstitucional para os problemas brasileiros. Aliás, vale aqui pautar o forte aviso dado pela Corte Constitucional Alemã sobre o dever de proporcionalidade e a sujeição a limites normativos em relação à atuação do Banco Central Europeu.

É necessário rever a regressiva matriz tributária brasileira (o que inclui o reexame das renúncias fiscais), assim como é preciso pautar limites consistentes às despesas financeiras, sobretudo na precária e opaca assunção de dívida pública para fins de gestão da liquidez na política monetária, que tem sido marcada por uma inconsistente e cínica “inflação de desculpas”, como suscitado por Ricardo Barboza e Bráulio Borges.

Todo esse cenário nos dá a dimensão primordial de que não cabe reduzir o tamanho do Estado em plena pandemia, porque, a bem da verdade, o reconhecimento da calamidade pública decorrente da Covid-19 tem consequências jurídicas até mesmo no que se refere ao dever de mitigação continuada dos seus riscos intertemporais.

Entregar resposta estatal insuficiente é literalmente assumir a responsabilidade objetiva por lesão e ameaça de lesão a direitos, tal como se sucede com as mais de 30 mil mortes evitáveis e a vulnerabilidade de renda e emprego da maioria da população brasileira. Em igual medida, acelerar voluntariosa e irrefletidamente a reabertura econômica trará ainda maior prejuízo intertemporal, na medida em que tal decisão política de curto prazo tornará mais lenta e onerosa a recuperação da economia.

As autoridades governamentais não podem se exonerar do enfrentamento sistêmico da calamidade reconhecida pelo Congresso Nacional, a pretexto de restrição fiscal. Ou o Estado age, ou ele nega sua razão de existir.

Cabe aqui, por sinal, resgatar o forte comando do art. 2º, §2º da Lei 12.608/2012, que dispõe sobre a política nacional de proteção e defesa civil, onde é fixado – direta ou indiretamente – o regime jurídico dos desastres possivelmente ensejadores de situações de calamidade pública:

Art. 2º É dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre.

[…] § 2º A incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco.

Desastre, por sua vez, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS):

Trata- se de uma alteração de forma súbita de pessoas, de seu meio ambiente ou de seus bens causada por fatores externos de origem natural ou causado pela ação humana e que demanda uma ação imediata por parte das autoridades de saúde, visando à diminuição das consequências do mesmo. Excede à capacidade de resposta e demanda ajuda externa de ordem nacional ou internacional. (grifo nosso)

Nosso país vive há meses sob uma reconhecida situação de calamidade pública que se prolongará além do previsto inicialmente e, desde já, sabemos ser necessário rever nosso arcabouço fiscal para fazer face às ações estatais de mitigação dos riscos decorrentes da Covid-19.

Não podemos acumular o desastre já consumado de meio milhão de casos confirmados e de 30 mil mortes evitáveis ao desastre de um Estado incapaz de justificar sua razão constitucional de existir. Por um questionável receio de o teto cair, despencaremos todos nós no abismo incivilizado da barbárie fiscal.

Não sejamos imprudentes, tampouco assumamos a responsabilidade pelo acúmulo de mortes evitáveis por causa do teto de despesas primárias, cujo desenho já era, desde sua origem, constitucionalmente questionável e que, por sinal, está sob forte debate no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Conservar o teto da Emenda 95 a qualquer custo sanitário, social e econômico é escolha vedada por nossa Constituição. Se já fomos capazes de reconhecer que a presente calamidade pública é tão grande e grave ao ponto de justificar um “Orçamento de Guerra” (Emenda 106/2020), onde foram alterados o regime jurídico da regra de ouro (art. 167, III) e do Banco Central (art. 164, §1º), sejamos coerentes em assumir a necessidade de reformar o arcabouço do “Novo Regime Fiscal”.

Desastre maior, neste momento, é não sairmos todos em busca de equidade fiscal para salvar vidas, sustentar a atividade econômica e proteger as pessoas mais vulneráveis.

 

Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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