Criação de órgão com competência para processar e julgar IRDRs poderia resolver divergências jurisprudenciais
O sistema judicial brasileiro, insculpido na Constituição de 1988, parte de rígidas competências dos órgãos judicantes, tanto no que toca as matérias a serem processadas e julgadas, quanto nos meios, isto é, nos instrumentos processuais definidos, seja em competência originária, seja em competência recursal.
De 1988 para cá, o sistema processual brasileiro passou de modelo clássico civil law para um modelo híbrido, tendo caminhado em direção ao consagrado modelo inserto em sistemas de common law – denominado stare decisis – expressão latina que indica a vinculação dos efeitos de uma decisão proferida por Corte Judicial com tal mister.
Temos, então, um sistema que eleva a decisão judicial a categoria de norma primária, superando o formalismo histórico observado no Brasil, em que a lei, e tão só ela, seria fonte primária do direito. O primeiro passo do status quo para o atual, indubitavelmente, se deu com a Emenda Constitucional n. 45/2004, que inaugurou institutos como a da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos, de modo que, em que pese termos instrumentos de controle de constitucionalidade desde a Constituição republicada de Rui Barbosa, de 1891, passamos a dispor de instrumento de vinculação de efeitos às decisões judiciais.
O precedente consiste em ferramenta cujo fim primeiro sempre deverá ser a pacificação das relações jurídicas em sociedade, sem a qual torna-se inviável o estado de direito, na medida em que ninguém será capaz de calcular as consequências de seus atos em sociedade. E quando avançamos para análise do direito tributário, temos que – indubitavelmente – a matéria é de aptidão para o sistema de precedentes. Admitir a proliferação de ações judiciais sobre a mesma matéria jurídico-tributária, de milhares de contribuintes, é mais do que disfuncional, é irracional.
Desta forma, afora a necessidade de aprimorarmos o sistema de precedentes brasileiro, máxime pela priorização de se delinear, em cada tese julgada, seus fundamentos determinantes e tornar colegiada a redação de seu ementário – tema que trataremos em artigo apartado, fato é que o sistema de precedentes é o melhor ferramental de natureza processual disponível para, de um lado garantir uma decisão idealmente mais célebre, e, de outro, pacificar as relações em uma única decisão.
A reforma tributária e o seu contencioso
Seria uma grande injustiça bradar que a reforma tributária foi um insucesso. Ao contrário, alçará o sistema tributário brasileiro a um novo patamar de segurança jurídica, simplicidade e transparência. Mas não por isso deixamos de aproveitar essa oportunidade ímpar e valiosíssima para criar um sistema ótimo. Optamos pelo bom.
As críticas, as quais fundamentalmente atingem o crédito sujeito ao pagamento pelo fornecedor do bem ou do serviço, o uso generalizado do split payment, equiparando a inadimplência à fraude e à sonegação em detrimento do fluxo de caixa das empresas e, por fim, ponto no qual nos deteremos, a ausência de tratamento do contencioso decorrente da reforma.
Impensável imaginar qualquer medida jurídica no Brasil sem calcular o seu correspondente contencioso, inclusive para fins de lançar mão de soluções que viabilizem, ao mesmo tempo, o que antevemos como pilares: decisões céleres e tecnicamente fundamentadas. O Brasil, como sabemos, tem números astronômicos de processos judiciais em curso, liderando, de longe, as ações de natureza tributária, como a matéria de maior contencioso no Brasil, máxime pela ineficiência dos executivos fiscais ajuizados pelos três níveis federativos.
Os números[1], praticamente decorados pelos acadêmicos e profissionais da área contenciosa, não nos deixam mentir. Em 2019, (i) o contencioso administrativo e judicial brasileiro na esfera tributária somou 75% do PIB; (ii) dos R$ 5,44 trilhões de estoque de processos tributários, R$ 4,01 trilhões (74% do total) estão envolvidos em disputas nos tribunais federais e estaduais (para os quais se obteve dados); (iii) a conclusão de um processo tributário no Brasil leva em média 18 anos e 11meses, incluindo as fases administrativa e judicial.
Entretanto, a Lei Complementar n. 214 e o PLP 108, trazem um contencioso administrativo desdobrado em dois tribunais administrativos de preocupante eficiência e enormemente custosos aos erários. Quanto ao contencioso judicial, nem uma linha sequer.
Uma singela sugestão para o contencioso judicial tributário
Dito isso ideias surgiram, com destaque para o corajoso e bem construído projeto de emenda constitucional, gestado no CNJ, sob a liderança do ex-ministro Luís Roberto Barroso e pelos procuradores federais Leonardo Alvim e Rita Nolasco, além de outros grandes nomes da academia tributária.
Ocorre, outrossim, que a PEC encontra resistência, seja pela perda de competência dos tribunais estaduais e federais, e com isso importante fonte de custeio destas cortes, seja em razão do grande dispêndio orçamentário para se criar um tribunal, mesmo que de atuação virtual. Adiciona-se a essas críticas, o fato de se criar distância entre os advogados públicos e privados e os magistrados que irão julgar a causa.
Nessa esteira, e considerando tais desafios, novamente sem desdourar dos méritos da PEC em comento e de sua ideia de foro nacional único e online, parece-nos que há outra possibilidade mais simples e, pensamos, que possa cirurgicamente resolver o problema que tanto aflige a todos os pensadores do direito tributário: a divergência jurisprudencial e, com isso, a instabilidade absoluta do direito tributário pós-reforma. Afinal, estamos exaustos de esperar 20 anos para uma tese ser definida e, ainda assim, dela surgirem tantas outras, tornando infindável o litígio. Referimo-nos ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, previsto no artigo 976, do CPC; cuja previsão se dá exatamente para evitar a proliferação de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito (inciso I), bem como qualquer risco de ofensa à isonomia e a à segurança jurídica (Inciso II).
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Isto porque o IRDR permite, com a sua admissibilidade, a suspensão dos processos que contenham a mesma contenda jurídica. Ademais, deverá ser julgado no prazo de 1 (um) ano (Art. 980, CPC).
E qual seria a solução, caso se opte pelo IRDR para resolver divergência jurisprudencial entre julgados dos TJ´s e TRF´s, no que tange as suas competências decisórias e estruturas autônomas?
Entre manter as estruturas atuais e padecermos no tempo da insegurança jurídica natural que advirá por conta de decisões conflitantes sobre a mesma matéria por diferentes Cortes e criar uma nova estrutura mista, composta por magistrados de diferentes carreiras e estruturas, tornando o judiciário virtual e com um grande desafio orçamentário a reboque, surge como possibilidade a criação de um órgão especial com competência para processar e julgar IRDRs admitidos pelas Cortes Estaduais e Federais, composto, na forma da ideia original da PEC, por desembargadores federais e estaduais e cuja competência será exclusiva para este mister. Se adotada tal sugestão, não haverá competência recursal, muito menos originária. Apenas definir teses unicamente jurídicas, pela via do IRDR, sem prejuízo da análise do Incidente de Assunção de Competência, quando verificada questão de relevante questão de direito, com repercussão social, em matéria tributária.
Esta ideia representa um pequeno ajuste do que propusemos, em conjunto com a brilhante professora Micaela Dutra[2], em que propusemos que o IRDR fosse proposto ao STJ, na linha da Ação Direta de Legalidade trazida pela Proposta do CNJ. No entanto, parece-nos mais factível, no contexto atual, na realidade do possível, que o IRDR seja proposto neste novo colegiado.
De se notar que a criação de um órgão especial misto dispensaria alteração constitucional, reduziria drasticamente o dispêndio orçamentário frente as demais propostas e manteria as competências originárias das Cortes Estaduais e Federais no processamento e julgamento de executivos fiscais e ações ativas, baseadas em questões fáticas ou mesmo jurídicas, desde que não tenham potencial multiplicador e/ou sem relevância jurídica, sem afetar seus orçamentos próprios, especialmente no que toca as suas receitas, além de atender ao anseio pela proximidade dos magistrados e dos jurisdicionados, com foco no integral conhecimento da realidade e necessidades locais.
É dizer que, composto o novo órgão, sintético e barato, além de efetivo, e julgado o mérito em até um ano por meio do IRDR, haverá, normalmente, recurso ao STJ para julgue a matéria, mas sem prejuízo de já haver a pacificação no âmbito das Cortes de 2º grau, com vinculação aos Juízos de 1º grau, solucionando a grande ansiedade – perfeitamente fundamentada – de toda a comunidade jurídica e temor que é inerente a um ambiente inseguro.
Reconhecemos os desafios de qualquer ideia que altere o status quo, bem como que, em muito menor grau, haverá a necessidade de se definir o orçamento para o órgão que ora se sugere a criação, mas, em vista do risco de decisões divergentes, o que tornaria a justiça um jogo de sorte, e não de razão, parece-nos a solução possível e eficiente.
Fonte: JOTA

