A Reforma Tributária sobre o consumo deve ser celebrada, mas não se pode apequenar a proposta do Imposto Seletivo. Falar de tributação exige fazer contas para mitigar riscos de distorções de mercado
Márcio Holland — professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eesp) e coordenador de Programas de Pós-Graduação lato sensu
A aprovação da Reforma Tributária sobre o consumo deve ser celebrada, e sua implementação deve ser promovida com destaque nos próximos governos. A agenda de reformas estruturais não pode ter volta. Não se pode, contudo, perder essa oportunidade apequenando a proposta do Imposto Seletivo. De fato, não é tarefa fácil definir quais bens e serviços são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Muito menos é dado como certo que a tributação em si seria o único instrumento capaz de desestimular o consumo desses produtos.
A boa notícia é que o Brasil tem uma série de dados que permite um amplo diagnóstico e subsidia as melhores escolhas de políticas públicas. E o desenho dessa nova tributação deve se beneficiar dessa virtude e se basear, predominantemente, no princípio da extrafiscalidade — se afastando do conceito de um imposto meramente arrecadatório.Vejamos o exemplo do açúcar no Brasil. Visando desincentivar o consumo, o Imposto Seletivo se limitou a bebidas que contêm açúcar apenas em dois tipos: os refrigerantes açucarados e os refrescos açucarados — que representam somente 1,3% da ingestão calórica média do brasileiro. O açúcar propriamente dito, que responde por 5,8% da ingestão calórica nacional, foi incluído na Cesta Nacional de Alimentos e, com isso, terá alíquotas da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) reduzidas a zero. Ou seja, se adicionarmos água ao açúcar, haverá punição tributária; mas o consumo abundante de açúcares em diversos alimentos não causa, aparentemente, problemas à saúde.Segundo as últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o consumo de refrigerantes, por exemplo, vem caindo de forma consistente há mais de uma década no Brasil. Em contrapartida, o dos demais bens prejudiciais à saúde se mantém ou vem crescendo. No mesmo período, a prevalência da obesidade e do sobrepeso aumentou, como registrado nas duas últimas edições da Pesquisa Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é clara ao afirmar que a obesidade resulta de um desequilíbrio entre ingestão e gasto calórico. Não é um único produto que causa obesidade, mas uma combinação de diferentes fatores: consumo excessivo de alimentos ricos em carboidratos, gordura saturada, sódio e açúcares, além do estilo de vida, do padrão e formato de trabalho, da insuficiência de práticas esportivas, de aspectos socioculturais e psicossociais, entre outros.
Falar de tributação exige fazer contas para mitigar riscos de distorções de mercado. No Brasil, os refrigerantes já estão sujeitos a elevada tributação, e o sistema tributário nacional conta com seletividade para esse caso. Com a reforma, a carga tributária do setor deve subir cerca de 1,1%, caso a alíquota do IVA (CBS IBS) chegue a 26,5%. Ao mesmo tempo, bebidas substitutas (sucos de frutas, por exemplo) devem ter redução relevante da carga tributária, ampliando ainda mais a diferença de tratamento (seletividade). Ou seja, a adoção de um imposto seletivo adicional aos novos tributos deve implicar em majoração na carga tributária atual.Ao analisar dados de preços e consumo de bebidas não alcoólicas — como refrigerantes e sucos de frutas naturais — com metodologias econométricas internacionalmente reconhecidas, não se observa efeito de substituição relevante. Tecnicamente, a elasticidade de substituição entre refrigerantes e sucos naturais não é estatisticamente diferente de zero. Assim, não é esperado que o aumento de carga tributária sobre refrigerantes impulsione a demanda por sucos naturais, mas apenas eleva o peso da tributação sobre um produto consumido, comprometendo ainda mais a renda das famílias mais pobres. A propósito, dados da POF indicam que, entre essas famílias, o refrigerante representa apenas 0,69% da ingestão calórica diária. Ou seja, o que alguns chamam de seletividade pode ser lido como regressividade tributária.
A prevalência da obesidade e o crescimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) são, de fato, graves problemas de saúde pública. Exigem diagnósticos precisos e soluções efetivas. A construção de um caminho mais saudável para a sociedade depende do uso de dados, de evidências sólidas e da formulação de políticas sustentáveis.