Em vez de responsabilizar gestor político que desenhou a política falha, sistema culpa o servidor executor
O debate sobre a avaliação de desempenho no serviço público brasileiro é, em essência, uma disputa sobre responsabilidade pelo descumprimento das promessas constitucionais sociais. O texto original da Constituição de 1988, focado na impessoalidade e na proteção do Estado contra interesses não republicanos, não continha tal avaliação de desempenho para os servidores, pois a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas era, implicitamente, do agente político eleito. Isso não significa dizer que o funcionalismo público tinha imunidade, pois é próprio da burocracia (do tipo weberiana) o respeito à hierarquia, de modo que o seu desempenho sempre esteve atrelado ao cumprimento das ordens dos gestores políticos, e não ao resultado da opção política a cargo deste, cuja avaliação de desempenho é feita pelas urnas.
A primeira grande ruptura nesse modelo veio com a Emenda Constitucional 19/1998, que, ao introduzir o Art. 41, § 1º, III, criou a possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho, condicionada a uma Lei Complementar. Foi o primeiro passo para transferir a responsabilidade pela má qualidade dos serviços do gestor político para o servidor executor, embora essa previsão tenha permanecido “adormecida” por décadas, sem regulamentação nacional.
Mais de vinte anos depois, a Emenda Constitucional 109/2021 (originada da PEC Emergencial) aparentou dar um passo em outra direção, ao inserir o § 16 no art. 37. Este dispositivo focou corretamente no problema real: a necessidade de avaliação das políticas públicas, não dos servidores. Este era um comando claro aos gestores políticos, determinando que suas decisões (alocação de recursos, desenho de programas) deveriam ser avaliadas pela sua eficácia. Mas as propostas do GT da Reforma Administrativa pretendem colocar em prática um constitucionalismo abusivo já denunciado num ensaio anterior: sob o pretexto de avançar com a EC 109 (avaliar políticas) com o spending rewiew, elas, na verdade, resgatam e armam a EC 19 (punir servidores), criando um sistema sofisticado que transfere o ônus do fracasso político para o elo mais fraco da corrente.
Esta arquitetura opera em três níveis interligados (macro, meso e micro), conectando a revisão de gastos diretamente à carreira do servidor. No nível macro, as propostas regulamentam o mandato da EC 109. O art. 165 da PEC estabelece a “revisão de gastos públicos” (spending review) de forma contínua (§ 2º-A), determinando que ela seja baseada nas avaliações de políticas públicas (§ 2º-B) e que as próprias leis orçamentárias (PPA, LDO, LOA) observem esses resultados (§ 16). Para fechar o cerco, o Art. 37, § 17 da PEC exige uma “avaliação prévia simplificada” antes da criação de qualquer nova política. Este nível, portanto, cria o motor fiscalista: políticas com má avaliação (seja por desenho político ruim ou subfinanciamento crônico) terão seus orçamentos cortados. Aqui, a responsabilidade ainda parece ser do gestor político.
É no nível meso (organizacional) que a transferência de culpa começa. O art. 38-A da PEC é a ponte crucial. Ele determina que o “Planejamento Estratégico” (baseado nas avaliações macro) deve se desdobrar no “Acordo de Resultados” anual (nível meso). Este acordo, detalhado pelo PLP no art. 2º e art. 6º, é o contrato de metas institucionais. O art. 6º do PLP inova ao exigir que a avaliação do acordo considere a “percepção dos usuários” através de pesquisas de satisfação. O que parece ser um avanço, na verdade, é o mecanismo de pressão: quando a política pública falha (macro), a frustração do cidadão é capturada por esta métrica (meso) e inserida no “Acordo” do órgão, que se torna o receptáculo da má gestão política.
Finalmente, no nível micro (servidor), a transferência indevida de responsabilidades se completa. O mesmo art. 38-A da PEC determina que o “Acordo de Resultados” do órgão (meso) se desdobra no “Plano de Avaliação Periódica de Desempenho” (micro). O art. 39-A da PEC torna a avaliação do servidor obrigatória. É o PLP (Art. 19 ao 30) que finalmente se apresenta como a Lei Complementar exigida pela EC 19/98, detalhando o instrumento de punição: define os critérios (produtividade, qualidade) e a nota de corte (desempenho insatisfatório abaixo de 70%). O art. 12 do PL amarra a carreira a essa nota, proibindo a progressão apenas por tempo de serviço e exigindo o “mérito” (a nota da avaliação) como condição indispensável para qualquer promoção.
O ciclo está fechado: uma política pública mal formulada ou cronicamente subfinanciada (decisão política macro) é avaliada como “ineficaz”. Isso gera metas impossíveis no “Acordo de Resultados” do órgão. O servidor, que apenas executa ordens e não tem poder decisório sobre a política, falha em atingir as metas individuais. O sistema, então, em vez de responsabilizar o gestor político que desenhou a política falha, pune o servidor executor, que terá sua progressão de carreira negada ou seu cargo ameaçado.
A inserção da avaliação de desempenho pela EC 19, per si, exala inconstitucionalidade, uma vez considerado o contexto gerencialista da reforma de 1998, o qual não se compatibiliza com o desenho original da administração constitucional de 1988. As propostas do GT da Reforma Administrativa de 2025 aprofundam o abuso daquela previsão inconstitucional, destruindo a Carta de 1988 por dentro, usando o pretexto de regulá-la para, no fim, absolver o agente político e culpar o simples mensageiro
Fonte:JOTA

