sexta-feira, junho 6, 2025
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IOF: a gula do governo às custas da segurança jurídica

Indefinições em normas tributárias são gatilhos diretos de insegurança jurídica e imprevisibilidade

A sociedade brasileira testemunha, mais uma vez, a insaciedade arrecadatória do governo federal: a partir da edição dos Decretos 12.466 e 12.467 no final de maio de 2025, foram majoradas significativamente as alíquotas do IOF incidente sobre operações de crédito, câmbio e seguros, além de sua expandida, de forma controversa, hipótese de incidência.

Um movimento que, sob o verniz da discricionariedade regulamentar outorgada ao Poder Executivo, atenta contra a legalidade, a segurança jurídica e a previsibilidade – elementos indispensáveis para a confiança dos investidores e a credibilidade do ambiente econômico.

Com os novos decretos, a alíquota diária do IOF-Crédito passou de 0,0041% para 0,0082%, enquanto a alíquota fixa adicional saltou de 0,38% para 0,95%. A carga anual poderá chegar a 3,95%, mais que o dobro da anterior. Em um contexto econômico de juros altos, o setor privado tende a enfrentar dificuldades para viabilizar novos financiamentos.

Apesar da natureza extrafiscal do IOF, os novos decretos carecem de motivação clara que justifique sua edição, além da necessária arrecadação para se contrapor ao crescente gasto público e supostamente “cumprir a meta fiscal”.

Embora este ponto também suscite discussões constitucionais relevantes, este artigo se limita à análise das alterações promovidas pelos parágrafos 23 e 24 introduzidos no artigo 7º do Decreto 6.306/2007, que promoveram a equiparação das “operações de crédito”, sujeitas, portanto, à incidência do imposto, às “antecipações de pagamentos a fornecedores” e os “demais financiamentos a fornecedores (“forfait” ou “risco sacado”).

É importante lembrar: nem toda transação que envolva crédito, no sentido econômico do termo, pode ser considerada uma operação de crédito para fins de incidência do IOF-Crédito. Para que o imposto seja devido, é indispensável que haja a constituição de uma obrigação pendente a ser adimplida pelo tomador dos recursos. Operações estritamente comerciais, como antecipações de pagamento a fornecedores não se enquadram nesse conceito.

Esse entendimento, inclusive, já foi reconhecido pela jurisprudência, pela doutrina especializada e até mesmo pela própria Receita Federal. A Solução de Divergência COSIT 9/2016 consolidou o entendimento de que só há operação de crédito, e, consequentemente, incidência de IOF, quando o cedente de um título assume responsabilidade pelo seu pagamento no caso de inadimplência do devedor original. Sem essa co-obrigação, o que se tem é uma cessão definitiva de direitos, sem os elementos jurídicos próprios de uma operação de crédito.

As hipóteses de incidência do IOF-Crédito, consolidadas no Decreto 6.306/2007, derivam de disposições constantes de lei:

  • O artigo 7º, inciso I, do Decreto-Lei 1.783/80 estabelece a incidência sobre empréstimos, inclusive abertura de crédito e desconto de títulos;
  • O artigo 58 da Lei 9.532/97 estabelece a incidência sobre alienações de direitos creditórios resultantes de vendas a prazo para empresa que exercer atividade de factoring; e
  • O artigo 13 da Lei 9.779/99 estabelece a incidência sobre mútuos de recursos financeiros quando o mutuante for pessoa jurídica.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.763, considerou constitucional o artigo 58 da Lei 9.532/1997, que prevê a incidência de IOF-Crédito sobre as operações de factoring, mesmo sem co-obrigação. No entanto, esse precedente não legitima a ampliação da hipótese de incidência do imposto promovida pelos novos decretos. Naquela oportunidade, o STF analisou uma hipótese de incidência prevista em lei, que não se confunde com ato infralegal do Poder Executivo.

A equiparação promovida pelos novos decretos, portanto, além de contrariar os conceitos de operação de crédito do Direito Privado, viola o princípio da legalidade, constante da Constituição Federal. Note-se que a observância ao princípio da legalidade, neste caso, demandaria a edição de uma lei complementar para tratar da matéria. Ademais, vale lembrar que a legislação expressamente veda a possibilidade de emprego de analogia que resulte na exigência de tributo não previsto em lei (artigo 108, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional).

A insegurança jurídica se intensifica com a ausência de definição sobre quem seria o fornecedor referido na norma. O decreto não delimita o alcance do termo, o que abre espaço para interpretações amplas e controvérsias quanto às operações sujeitas ao IOF-Crédito. Diante dessa lacuna, as autoridades fiscais e os contribuintes podem recorrer a referências do Direito Privado – como do Código Civil ou do Código de Defesa do Consumidor, sem necessária uniformidade.

A confusão persiste na análise de outras operações comuns no mercado. Se quem cede o crédito à instituição financeira é um terceiro alheio à relação obrigacional original (que gerou o crédito), poderia ele ser considerado fornecedor? Ou essa operação escaparia à nova regulamentação?

No caso de operações clássicas de antecipação de pagamento a fornecedores, o fornecedor cede seus créditos a uma instituição financeira e recebe os valores antes do vencimento. Nessa estrutura, é o fornecedor quem obtém os recursos e, sendo o tomador do crédito, quem deveria figurar como contribuinte.

O artigo 7º, § 24 do Decreto 6.306/07, no entanto, indica que o devedor seria o sujeito passivo do tributo – o que é juridicamente incoerente, já que o fornecedor não assume qualquer obrigação futura. Isto é, a relação jurídica se extingue com a cessão do crédito, eis que não há coobrigação.

Nas operações conhecidas como risco sacado, o cenário pode ser distinto. Dado que não há na regulamentação uma definição clara do termo risco sacado, o conceito decorre da prática empresarial, que engloba tanto operações de financiamento ao fornecedor, quanto operações em que o próprio sacado é o devedor, que tem sua dívida assumida pela instituição financeira.

Nesse caso, na prática, não há cessão de crédito nem relação contratual entre banco e fornecedor. Assim, a própria redação do decreto contraria, no nosso entender, a operação contemplada, já que não há, nesse caso, sequer adiantamento ou mesmo qualquer forma de financiamento ao fornecedor.

Essas indefinições não são meros detalhes técnicos ou lacunas: são gatilhos diretos de insegurança jurídica e imprevisibilidade. Quando o contribuinte não consegue identificar se está ou não sujeito ao tributo, qual é o fato gerador, quem é o sujeito passivo e como deve cumprir a obrigação, o risco de interpretações divergentes, inclusive contrárias ao posicionamento historicamente defendido pela própria RFB, aumenta exponencialmente.

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Normas tributárias precisam ser claras, coerentes e previsíveis. Quando não são, tornam-se obstáculos à atividade econômica. Os limites impostos pela legalidade e pela segurança jurídica não podem ser afastados pelos interesses meramente arrecadatórios.

Diante disso, é possível que a nova – e controversa – normativa venha a ser modificada, especialmente considerando que, no plano político, o Congresso Nacional já solicitou ao governo a apresentação de medidas alternativas à majoração de tributos. Até a conclusão deste artigo, no entanto, não havia manifestação oficial nesse sentido.

Em paralelo, mais de 20 Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) foram protocolados com o objetivo de sustar os efeitos dos decretos. Caso o Congresso Nacional não assuma esse papel moderador, restará ao Poder Judiciário exercer sua função de guarda da Constituição, restaurando segurança jurídica e confiabilidade a um sistema tributário que não pode continuar operando à base do improviso e da voracidade arrecadatória.logo-jota

Fonte: JOTA

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