Legislação permissiva e falta de pessoal no quadro da Receita Federal estão entre os motivos
A sonegação fiscal por parte de grandes empresas no Brasil não é um fenômeno isolado, mas sim uma estratégia de negócio recorrente que impõe um custo bilionário à União. Dados da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) mostram que as 10 empresas com as maiores dívidas tributárias no país somam R$ 80,9 bilhões em impostos não pagos.
A maior devedora é a Refinaria de Manguinhos, no Rio de Janeiro, com uma dívida de R$ 20,8 bilhões. A empresa, que opera sob o nome fantasia Refit, pertence à Fit Combustíveis, alvo de uma operação da Polícia Federal (PF) por crimes contra a ordem econômica e tributária. De acordo com o Ministério Público de São Paulo (MPSP), a Fit Combustíveis “causou enormes prejuízos ao erário de Estados e da União” por meio de “um engenhoso esquema de fraude fiscal estruturada”.
Na sequência das maiores devedoras, aparecem a Petrobras, com R$ 15 bilhões em dívidas, a Viação Aérea São Paulo (Vasp), cuja falência foi decretada em 2008, com R$ 9,5 bilhões, a açucareira Mendo Sampaio, que está em recuperação judicial, com R$ 8,2 bilhões, e a Ambev, com R$ 5,3 bilhões. No total, a Receita Federal estima que a União deixa de arrecadar cerca de R$ 200 bilhões anualmente devido aos devedores contumazes.
Segundo José Luis Oreiro, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), a decisão de não pagar impostos é, em muitos casos, uma escolha racionalmente econômica. Isso porque empresas que sistematicamente atrasam o pagamento de impostos consideram mais vantajoso arcar com juros e multas do que recorrer ao sistema bancário para conseguir os recursos para manter as operações diárias. “Em muitos casos, o próprio dinheiro que deveria ser usado para quitar o tributo é incorporado ao capital de giro da empresa”, explica.
Essa prática se sustenta na diferença entre os regimes de juros. Enquanto o juro de mora aplicado pela Receita Federal é simples e relativamente baixo, as aplicações financeiras no mercado rendem juros compostos. Com a taxa de juros elevada no Brasil, que atualmente está em 15%, a empresa pode lucrar ao atrasar o pagamento, aplicar o dinheiro no mercado financeiro e quitar a dívida posteriormente, com multa.
“O juro de mora dos impostos é simples. Já uma aplicação financeira rende juros compostos. Assim, a empresa pode até lucrar deixando de pagar o imposto, aplicando o dinheiro no mercado financeiro e quitando a dívida depois, com multa. Em muitos casos, isso é mais barato do que pegar empréstimo para financiar suas operações”, afirma Oreiro.
“Essas empresas acabam financiando suas atividades com recursos que deveriam ir para o Estado. Usam dinheiro de imposto como capital de giro. Então, acaba sendo um bom negócio atrasar impostos ou ficar devendo. Depois a dívida vai para juízo, contrata-se um advogado, e em alguns casos isso sai mais barato”, acrescenta.
Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), reforça que a motivação da sonegação é essencialmente econômica, visando o lucro e a concorrência desleal. “Muitas vezes, a sonegação é usada de forma ostensiva para praticar concorrência desleal e até concorrência predatória, aquela que visa eliminar a concorrência, não apenas vender mais. Desse modo, a sonegação pode ser utilizada com o propósito de constituir monopólios territoriais. Ao atingir determinado nível de monopólio, a empresa passa a determinar os preços dos produtos, ampliando sua margem de lucro”, afirma.
Santos ainda explica que a sonegação pode ser utilizada como mecanismo de lavagem de dinheiro a partir de importações. Por exemplo, uma pessoa que possui R$ 1 milhão de origem ilícita importa uma mercadoria que realmente vale esse valor, mas declara à Receita Federal apenas R$ 100 mil, quantia cuja origem consegue comprovar. Os outros R$ 900 mil, ilegais, são usados para pagar a importação fora do controle oficial.
Depois, ao vender essa mercadoria pelo preço real de R$ 1 milhão, o dinheiro ilícito retorna como se fosse receita legítima, ou seja, “esquentado”. Segundo Dão Real, esse tipo de crime é particularmente comum na compra de produtos com valor difícil de mensurar, como obras de arte, propriedade intelectual e royalties, justamente porque a variação e a subjetividade desses preços facilitam a manipulação dos valores declarados.
Quais brechas facilitam a sonegação?
De acordo com Dão Real, a administração tributária brasileira consegue identificar grandes esquemas de fraude, mas não todos. Um dos motivos é a escassez de servidores públicos. Em 2012, eram 12.158 auditores fiscais no quadro de pessoal da Receita Federal. Em 2021, eram 7.733 servidores, uma diminuição de aproximadamente 37%, segundo dados do Sindifisco.
Além disso, um fator que incentiva a sonegação é a cobrança de juros simples sobre os valores atrasados. “Pela legislação atual, os tributos são cobrados com juros simples, quando deveriam ser compostos. Com juros simples, torna-se mais barato atrasar o pagamento e aplicar o dinheiro no mercado financeiro, que rende mais. Com a taxa de juros elevada no Brasil, aplicações financeiras rendem mais que atividades produtivas”, afirma Dão Real. “Isso precisa ser corrigido no Código Tributário Nacional tanto para cobrança quanto para restituição.”
Outro elemento relevante são os programas de recuperação fiscal, conhecidos como Refis, que oferecem modalidades alternativas para quitar débitos tributários de empresas, com possibilidade de parcelamento e descontos. No plano federal, a Receita não lança um programa desse tipo desde pelo menos 2014 – que permitiu o parcelamento de débitos vencidos até 31 de dezembro de 2013 – embora iniciativas semelhantes continuem disponíveis nos âmbitos estaduais e municipais.
“Toda vez que se abre um programa de refinanciamento de dívida, nós estamos de certa forma desestimulando o contribuinte espontâneo. Ou seja, sempre que a gente cria um favor para quem deve, nós estamos desestimulando aquele que paga em dia. Todos esses programas desestimulam o pagamento correto, porque premia sempre quem deve”, argumenta.
Paralelamente, Dão Real afirma que a legislação tributária brasileira também é “excessivamente permissiva” no campo penal. “Quem rouba um saco de arroz vai preso mesmo que devolva o produto. Quem sonega, não: só pode ser processado criminalmente após todas as instâncias administrativas e judiciais serem concluídas, o que pode levar décadas. E, se pagar ou parcelar, não sofre punição penal”, afirma.
Em resumo, a combinação entre legislação permissiva, carência de pessoal e programas emergenciais de arrecadação estimula a sonegação. “É fundamental evitar janelas de oportunidade para sonegadores. O ambiente atual é propício à sonegação, e a legislação precisa ser modificada para tornar a prática mais onerosa. Sonegar deve ser caro”, acrescenta.
“O dinheiro sonegado é o que falta na saúde, na educação, na previdência, na segurança. É um crime contra toda a sociedade e deveria ser tratado com a devida gravidade, com direito à ampla defesa, mas com penalidades efetivas, inclusive patrimoniais e de prisão”.
Projeto de lei contra os devedores contumazes
O Projeto de Lei Complementar (PLP) 125/22, que prevê o combate às empresas que reiteradamente não cumprem as obrigações fiscais, foi aprovado na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (9).
De autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a proposta cria o Código de Defesa do Contribuinte e prevê regras mais rígidas para os chamados devedores contumazes, que são aqueles que utilizam a inadimplência fiscal como estratégia de negócios. O texto estabelece como devedor contumaz aquele que possui uma dívida acima de R$ 15 milhões e correspondente a mais de 100% do seu patrimônio conhecido de forma injustificada.
O projeto, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é essencial para combater esse tipo de fraude. “Se a lei for sancionada ainda este ano, entraremos em 2026 mais fortes para enfrentar o crime econômico”, afirmou o chefe da pasta à imprensa na manhã desta quinta-feira (27) logo após a operação.
Operação contra a Refit
A urgência do tema foi sublinhada pela megaoperação deflagrada no fim de novembro contra pessoas físicas e jurídicas do setor de combustíveis, incluindo a Fit Combustíveis, dona da Refit.
As investigações apontam que o esquema envolvia uma rede de empresas de fachada para evitar o pagamento de ICMS. Mesmo após a imposição de Regimes Especiais de Ofício, o grupo continuou a criar novas estratégias para driblar a cobrança e distorcer a concorrência.
O dinheiro obtido com as fraudes circulava por uma complexa rede de holdings, offshores, instituições de pagamento e fundos de investimento, com o objetivo de blindagem patrimonial. Os suspeitos são investigados por crimes como organização criminosa, crimes contra a ordem econômica e tributária, e lavagem de dinheiro. A Justiça determinou o bloqueio imediato de R$ 8,9 bilhões, além de tornar indisponíveis outros R$ 1,2 bilhão ligado à organização.
Fonte: Brasil de Fato

