segunda-feira, maio 5, 2025
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Reforma tributária, setor agropecuário e desafios da saúde pública

Tributação dos agrotóxicos deveria refletir seu grau de toxicidade e fomentar práticas sustentáveis

A reforma tributária aprovada em 2023, pela Emenda Constitucional 132, marcou o sistema tributário brasileiro ao instituir o Imposto Seletivo (IS), tributo extrafiscal destinado a desestimular o consumo de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Apesar de parecer alinhada à justiça social e à sustentabilidade, a exclusão dos agrotóxicos da incidência do IS evidencia uma grave contradição entre os princípios constitucionais e as escolhas políticas adotadas.

A Constituição não veda o Imposto Seletivo sobre insumos agrícolas. Prevê, apenas, de forma genérica, que produtos com alíquota reduzida de IBS e CBS não serão atingidos pelo IS. Essa vedação, no entanto, admite interpretação crítica, pois a concessão de alíquotas reduzidas não foi acompanhada de critérios técnicos ou gradação conforme a toxicidade dos produtos. Assim, agrotóxicos altamente nocivos à saúde e ao meio ambiente continuam beneficiados por renúncias fiscais, enquanto bebidas alcoólicas e açucaradas foram incluídas como “seletivas”.

A decisão também se ancora em uma disputa semântica que molda o debate público. Em que pese a legalidade do termo “agrotóxico”, consoante artigo 2º, inciso XXVI, da Lei 14.785/2023, o setor agroquímico insiste na expressão “defensivos agrícolas” para nomear substâncias essencialmente tóxicas.

Essa construção linguística, longe de ser neutra, desloca o foco da toxicidade e reforça a legitimidade social de seu uso. A linguagem, como ferramenta de poder, suaviza os impactos dos agrotóxicos e perpetua políticas fiscais privilegiadas, dificultando a consciência crítica sobre seus riscos.

O Brasil lidera o consumo mundial de agrotóxicos, com 719 mil toneladas utilizadas em 2021 — número que supera amplamente os dados de China e Estados Unidos. Estima-se que 84% dessas substâncias sejam usadas no cultivo de commodities de exportação, como soja e milho, reforçando um modelo agrícola voltado ao mercado internacional e alheio às necessidades alimentares da população.

Esse arranjo é sustentado por políticas fiscais que, ao isentar ou reduzir tributos sobre os agrotóxicos, funcionam como subsídios indiretos. Enquanto isso, o SUS assume os custos da intoxicação — um impacto sanitário e orçamentário.

Apenas no Paraná, os custos com intoxicações agudas por agrotóxicos ultrapassam US$ 149 milhões. Nacionalmente, a renúncia fiscal com isenções a esses produtos somou R$ 12,9 bilhões em 2021 — cinco vezes mais que o valor destinado pela União à prevenção de desastres naturais em 2024. Trata-se de um paradoxo fiscal e ambiental: o país se compromete com a proteção ambiental em textos constitucionais e tratados, mas financia com recursos públicos práticas nocivas à biodiversidade, à saúde coletiva e à segurança alimentar.

Diante disso, é necessário repensar a organização econômica, como propõe a economia do cuidado. Essa abordagem, em ascensão no debate público, busca reequilibrar a estrutura produtiva ao priorizar o bem-estar e a sustentabilidade. Valoriza o trabalho reprodutivo, historicamente não remunerado pelas mulheres, e redefine os marcos da eficiência econômica ao incorporar a proteção da vida como princípio inegociável. Nesse cenário, a política tributária pode e deve ser instrumento de transformação.

A tributação dos agrotóxicos deveria refletir seu grau de toxicidade e fomentar práticas sustentáveis, como a agroecologia e a agricultura familiar. Isso exigiria romper com o estímulo indiscriminado ao agronegócio exportador e reconhecer os impactos desiguais da exposição a tais produtos. São as mulheres — especialmente as negras e periféricas — que primeiro vivenciam esses efeitos, seja no trabalho direto no campo, seja pela exposição ao leite materno, à água contaminada ou aos alimentos consumidos diariamente.

Pelo ecofeminismo, os danos causados pelos agrotóxicos vão além do ambiental: estruturam formas de dominação que associam corpo feminino e natureza como territórios de exploração. Federici aponta que o trabalho de cuidado — da gestação à criação dos filhos, do cuidado com idosos à manutenção do lar — foi e segue invisibilizado como pilar da reprodução social. Tributar os agrotóxicos é também uma medida de justiça de gênero, pois protege os corpos mais afetados e redistribui os custos de um modelo que concentra lucros e difunde riscos.

Diversos países adotam diretrizes mais coerentes com objetivos climáticos e sanitários. A França aplica tributação progressiva conforme a periculosidade dos produtos, e a União Europeia busca reduzir em 50% o uso e os riscos dos agrotóxicos até 2030. O Brasil, por sua vez, segue na direção oposta: a Lei 14.785/2023, chamada Lei do Veneno, flexibilizou o registro de novos agrotóxicos, ampliando o fosso entre ciência e regulação.

Nesse cenário, é fundamental retomar os princípios constitucionais que orientam o Direito Tributário. A seletividade, quando aplicada de forma técnica e guiada pela essencialidade, pode induzir práticas agrícolas menos nocivas. A leitura de que os agrotóxicos, por serem insumos, não podem integrar o IS ignora que o próprio conceito de “insumo” precisa ser revisto à luz das novas balizas constitucionais, especialmente as que vinculam a tributação à proteção ambiental e à saúde pública.

É urgente reavaliar a lógica fiscal, revelar os interesses por trás das isenções e construir um sistema tributário alinhado com a vida. A reforma abre uma janela de oportunidade, mas sua regulamentação expõe a persistência de um modelo extrativista, patriarcal e racista, que transforma alimento em mercadoria, o campo em monocultura, e os corpos das mulheres em zonas de risco silencioso.

Este artigo inicia essa reflexão, mas o debate é vasto. É preciso aprofundar a análise da linguagem tributária e seus efeitos semióticos; compreender os impactos sob o viés da justiça climática; investigar a contaminação racializada no campo; debater o apagamento da agricultura familiar; e comparar experiências internacionais que articulam tributação, saúde e meio ambiente. Reestruturar a política fiscal é, em última instância, um ato de cuidado. Cuidado com o futuro, com o planeta e com os corpos que ele sustenta.

Fonte: Jota

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