‘Ao excluir o direito ao crédito para quem está no Simples, e ao limitar o creditamento do adquirente, o modelo transforma a simplicidade em desvantagem competitiva’
A reforma tributária sobre o consumo, inaugurada com a Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, estabeleceu pilares fundamentais para a estruturação de um novo sistema tributário: simplificação, justiça fiscal, transparência, e sobretudo, neutralidade. A neutralidade busca impedir que os tributos interfiram nas decisões econômicas dos contribuintes, resguardando a livre concorrência e a eficiência alocativa de recursos (artigo 2°, da LC n° 214/2025).
Contudo, uma leitura atenta da nova disciplina do Simples Nacional revela um problema estrutural: a neutralidade tributária foi, na prática, comprometida para as micro e pequenas empresas que optam pelo regime unificado.
Simples Nacional e a nova cesta de tributos
O Simples Nacional é um regime constitucionalmente garantido, previsto no artigo 146, III, “d”, da Constituição, e atualmente disciplinado pela LC nº 123/2006. Seu objetivo é assegurar tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de um modelo simplificado e unificado de arrecadação de tributos.
Com a reforma, o Simples foi preservado, mas sofreu uma profunda transformação: ele passará a englobar também os recém-criados IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Esses dois tributos seguem o modelo do IVA (imposto sobre valor agregado), sendo não cumulativos e creditáveis ao longo da cadeia de produção e consumo.
A LC nº 214/2025 permite que os contribuintes do Simples optem por incluir ou não o IBS e a CBS na sistemática unificada. Porém, a escolha pela unificação traz sérias limitações econômicas, especialmente no tocante à apropriação de créditos tributários.
A quebra da neutralidade
Os contribuintes que optarem por recolher o IBS e a CBS pelo regime unificado não terão direito à apropriação de créditos desses tributos. Por outro lado, os adquirentes de seus bens materiais ou imateriais — desde que não optantes pelo regime único de arrecadação — poderão apropriar os créditos do IBS e da CBS em montante equivalente ao cobrado por meio do regime único (artigo 146, §3°, da Constituição/1988).
Esse arranjo compromete diretamente a neutralidade econômica. A vedação ao creditamento integral gera um custo tributário invisível para o adquirente dos bens ou serviços prestados por optantes do Simples, que pode preferir negociar com empresas fora do regime, a fim de aproveitar plenamente os créditos de IBS e CBS. Assim, as micro e pequenas empresas passam a enfrentar uma desvantagem concorrencial sistêmica, que não decorre de ineficiência ou informalidade, mas de um desenho legal tributário.
Simples, mas sem competitividade
O princípio da neutralidade, como previsto expressamente na Constituição após a EC nº 132/2023, é de observância obrigatória para o IBS e para a CBS. A neutralidade não é uma abstração: ela busca evitar que o sistema tributário desloque decisões econômicas racionais — como a escolha de um fornecedor — por razões fiscais.
Ao excluir o direito ao crédito para quem está no Simples, e ao limitar o creditamento do adquirente, o modelo transforma a simplicidade em desvantagem competitiva, contrariando o próprio espírito do regime unificado de arrecadação.
Mais do que uma inconsistência técnica, trata-se de uma violação de direitos fundamentais das micro e pequenas empresas, que passam a conviver com uma forma de tributação desvantajosa. Ainda que não sejam oneradas diretamente, são indiretamente excluídas das cadeias de fornecimento mais complexas, onde a apropriação de créditos plenos é critério decisivo.
Alternativas e riscos
A legislação permite que o contribuinte do Simples opte por recolher o IBS e a CBS fora do regime unificado — o que confere direito ao crédito —, mas essa opção deve ser feita semestralmente, com prazos irretratáveis (artigo 13, §11, da LC n° 123/2006 — incluído pela LC n° 214/2025).
A rigidez do calendário e a complexidade de análise para definir a melhor opção fiscal em cada período agravam ainda mais o cenário de insegurança jurídica.
Em vez de garantir neutralidade e tratamento favorecido, a norma acaba penalizando a empresa justamente quando ela opta pelo modelo mais simplificado. A empresa do Simples que deseja competir com grandes fornecedores terá de se submeter às mesmas obrigações acessórias e apurações complexas do regime regular, sob pena de se tornar menos interessante para seus próprios clientes.
Considerações finais
A reforma tributária marca um importante avanço na construção de um sistema de tributação sobre o consumo mais transparente, uniforme e racional. Todavia, a forma como foi redesenhado o tratamento tributário das empresas optantes pelo Simples Nacional — especialmente no que se refere ao IBS e à CBS — revela uma contradição estrutural entre a promessa de neutralidade e sua efetiva implementação.
Ao impedir que o contribuinte do Simples aproprie créditos desses tributos quando inserido no regime unificado, e ao impor limitações à utilização desses créditos por seus adquirentes, a legislação inaugura uma assimetria concorrencial injustificável.
A consequência prática é que empresas de menor porte, que deveriam ser protegidas por sua vulnerabilidade econômica, passam a ser menos competitivas no mercado formal, simplesmente em razão da sistemática de arrecadação que estão submetidas.
Esse desequilíbrio revela-se incompatível com os princípios constitucionais que orientam o sistema tributário nacional, em especial os da isonomia, capacidade contributiva, livre iniciativa e neutralidade, transformando o regime simplificado em fator de exclusão, invertendo a lógica do tratamento favorecido.
*Texto publicado originalmente no portal Consultor Jurídico (Conjur.com.br)