sexta-feira, dezembro 12, 2025
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Tributar doações? Mais um limite que a lei ultrapassou

Quando a União tenta enquadrar doação como renda, acaba criando, na prática, um ITCMD indireto

A criação de um imposto de renda mínimo trouxe à tona muitos problemas.  O projeto 1.087 foi absurdamente mal redigido e, dada a pressão para que fosse aprovado, a sua transformação na lei 15.270/25 não melhorou muito a situação. Dentre inúmeras falhas, um ponto merece atenção cuidadosa: à disposição, acerca da inclusão na base de cálculo do novo Imposto de Renda Mínimo da Pessoa Física, dos valores recebidos por doações entre pessoas que não sejam herdeiras entre si. O texto do projeto afirma que apenas as doações realizadas como adiantamento de legítima ou como herança ficariam fora dessa incidência. Todas as demais seriam tratadas como parte da “renda mínima” do contribuinte “super rico”.

À primeira vista, pode parecer uma medida voltada apenas à alta renda, quase um ajuste técnico dentro da reforma. Mas, ao olhar mais de perto, percebe-se que o projeto toca em estruturas constitucionais consolidadas, produzindo potenciais distorções com impacto jurídico e social significativo.

O ponto central e inicial é que a Constituição já decidiu quem pode tributar doações: os Estados e o Distrito Federal, responsáveis pelo ITCMD (imposto de doação e herança). O fato gerador é justamente a transferência gratuita de patrimônio, seja entre familiares ou entre pessoas sem qualquer vínculo sucessório. A União, por sua vez, recebeu competência para tributar renda — e doação não é renda. Não é fruto do trabalho, nem resultado de investimento; é um ato de liberalidade. Quando a União tenta enquadrá-la como renda para fins tributários, ela acaba criando, na prática, um ITCMD indireto, travestido de Imposto de Renda. Isso caracteriza invasão de competência.

Além disso, surge a questão da bitributação. Se uma doação já está sujeita ao ITCMD estadual, tributar a mesma operação via Imposto de Renda significa cobrar duas vezes sobre o mesmo valor, com a mesma base de cálculo, por dois entes diferentes. Não se trata de onerar uma capacidade contributiva maior; trata-se de duplicar a cobrança sobre um único e simples ato jurídico (ato econômico e fato gerador único). A Constituição veda esse tipo de sobreposição.

Há ainda um aspecto social frequentemente ignorado: a proposta não afeta apenas famílias de alta renda entre si. Ela alcança qualquer pessoa que receba uma doação que não seja herança. Imagine um empregador bem-sucedido que decide doar uma quantia significativa a um funcionário antigo, em reconhecimento por décadas de dedicação. Esse trabalhador, que certamente não integra o grupo de alta renda, seria penalizado pela regra. Ao tentar atingir um público restrito, o dispositivo acaba capturando situações que nada têm de injustas ou abusivas — são apenas expressões de generosidade ou gratidão.

Pessoas sem herdeiros também ficam nessa situação. Não poderão doar, sem dois tributos, um imóvel de mais de R$ 600.000,00 a um cuidador, a um amigo, a um parente (não herdeiro) – ainda em vida, pois isso não é tecnicamente um adiantamento de legítima.

Não se constrói justiça fiscal violando a repartição de competências, nem criando cenários de bitributação que distorcem o sistema e geram insegurança jurídica. Tributar patrimônio como se fosse renda não é apenas uma escolha técnica discutível; é um passo que pode fragilizar princípios constitucionais estruturantes. O país precisa, sim, modernizar seu sistema tributário, mas isso não pode ocorrer às custas da coerência constitucional, da proporcionalidade e da clareza sobre quem deve tributar o quê.

Se a intenção é tributar grandes fortunas, há caminhos possíveis dentro da moldura constitucional. Distorcer o conceito de renda para incluir doações entre terceiros não é um deles. A nova e afoita legislação abre um debate necessário, mas também revela o risco de ultrapassar fronteiras que existem para preservar o equilíbrio entre União, Estados e contribuintes.

Fonte:JOTAlogo-jota

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