Como canta o mestre Lulu Santos, “já não tenho dedos para contar” quantas reformas administrativas e propostas de reforma presenciei. A mais recente é a PEC nº 38/2025, apresentada em 24 de outubro de 2025 por iniciativa parlamentar, que já aparece ladeada por polêmicas, como se esperava. Nestes últimos dias de outubro, por exemplo, a imprensa noticia que deputados solicitaram a retirada de suas assinaturas da proposta de emenda constitucional. O assunto ainda renderá bastante, e por muito tempo — lembremos que as lojas já estão decoradas para o Natal e que em 2026 teremos eleições.
A proposta possui 52 páginas contendo um texto que possui o propósito confesso de “aperfeiçoar a governança e a gestão pública, promover a transformação digital, impulsionar a profissionalização e extinguir privilégios no serviço público”. Neste primeiro ensaio, centrarei a atenção nas regras que alteram o regime jurídico constitucional dos concursos públicos.
Competências da União
A primeira alteração digna de nota é a inserção de um novo inciso no artigo 22, que estabelece competências privativas da União, com o seguinte teor:
“Art.22. […] XXXII – normas gerais sobre o ciclo laboral da gestão de pessoas nas administrações públicas direta e indireta de qualquer dos Poderes e Órgãos autônomos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive quanto ao planejamento e reorganização da força de trabalho, à estruturação de carreiras, aos concursos públicos e processos seletivos, aos cargos em comissão e às funções de confiança, ao estágio probatório, ao regime e procedimentos disciplinares, ao conflito de interesses, ao desenvolvimento e aproveitamento de pessoal, às políticas de remuneração e de benefícios, à avaliação de desempenho e reconhecimento por resultados.”
No texto da proposta, se percebe a inserção de outras competências para a edição de normas gerais, tratando de outros aspectos. Tenho simpatia por essa técnica de reconhecer à União a competência para as questões que exigem disciplina uniforme, como regra por dizerem respeito à essência do federalismo. O problema prático com o exercício desta técnica pode ser exemplificado com a Lei nº 14.133/21, que estabelece normas gerais de licitação e contratação. Na falta de distinção, no texto da lei, entre as normas que seriam gerais (nacionais) daquelas outras que seriam especiais (e, portanto, federais, aplicáveis apenas à União), a decisão tem sido entregue ao Judiciário, criando um ambiente de insegurança jurídica.
Ciclo laboral
A despeito dessa consideração inicial, chamo atenção para a expressão “ciclo laboral”. A ideia de ciclo é oposta àquela de fragmentação entre as diversas etapas da vida funcional do servidor público, notadamente do servidor efetivo. No texto vigente, essas etapas seriam concurso público, estágio probatório, avaliação de desempenho e inatividade. Circundam essas etapas as disciplinas relativas às políticas de remuneração, ao regime disciplinar e à regulação de carreiras, dentre outras.
Em outras palavras, o ciclo já existe, muito embora me pareça interessante a ideia de uma disciplina geral para seu desenvolvimento, notadamente diante da baixa capacidade institucional de diversos municípios. Normas esparsas sobre todos esses assuntos já existem — normas próprias de cada um dos entes da federação, cuja competência é reconhecida em razão de sua autonomia. A novidade principal é justamente a previsão de uma norma geral para uniformizar princípios e parâmetros mínimos em todo o País, buscando garantir isonomia e coerência federativa.
O texto proposto para o artigo 37, inciso II, possui a seguinte redação:
“Art.37. […] II – a investidura em cargo efetivo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, que, em conformidade com o perfil profissional desejável, avaliará conhecimentos e habilidades estritamente necessários para o desempenho das respectivas atribuições, na forma prevista em lei nacional.”
A proposta aprofunda a necessária conexão entre o processo seletivo e seus critérios, buscando coerência e eficiência na seleção. A rigor, essa conexão já está prevista no texto atual que exige que o concurso seja “de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego”. O desafio estará — se aprovada a alteração — na construção do “perfil profissional desejável” para os diferentes cargos previstos nas estruturas administrativas. Quanto a isso, depositemos nossas esperanças na lei nacional que disciplinará o assunto.
Planejamento de concursos
A necessidade de planejamento dos concursos públicos sempre existiu, e sobre este tema já escrevi neste mesmo espaço há algum tempo. Os deveres que se quer impor com o inciso II-A [1], a rigor, também já existem e já são disciplinados por normas variadas, em diferentes esferas. Na administração federal, por exemplo, o planejamento dos concursos é tratado na Lei nº 14.965/2024 (trata-se de lei aplicável somente à administração federal, a despeito da ausência de previsão explícita nesse sentido no texto), no Decreto nº 9.739/2019, na IN Seges-MP nº 3/2010 e na Portaria MPOG nº 450/2002 (ao que consta, todos em vigor).
A conexão proposta com o planejamento estratégico para resultados é interessante e demanda pensamento de longo prazo, também conectado com o ciclo laboral. A novidade que me parece mais interessante é a priorização das carreiras transversais — entendo que seriam carreiras transversais aquelas não restritas a um órgão, entidade ou poder específico, que poderiam atuar em diferentes áreas da administração pública. A previsão de carreiras que “atravessam” as estruturas administrativas é bem-vinda, notadamente diante da possibilidade do aproveitamento de experiências e da busca de maior racionalidade na gestão e no apoio estratégico à Administração como um todo.
A medida pode evitar a fragmentação administrativa, a duplicidade de esforços e a redundância de atividades nos variados órgãos e entidades. Em tese, a novidade poderá fortalecer a construção de políticas de Estado, para além das políticas de governo e conferir maior sistematicidade às práticas de gestão. Não será fácil, sobretudo diante da multiplicidade de carreiras isoladas hoje existentes.
A possibilidade de aderir a concurso público realizado por outro ente, órgão ou entidade já era reconhecida — com diversos condicionantes — pela jurisprudência. Na PEc 38/2025, essa possibilidade ganha disciplina expressa no texto proposto para o artigo 37, inciso III-B:
“art.37. […] II-B – os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aderir a concurso público realizado de forma centralizada pela União, com aproveitamento de pontuações ou de cadastros de aprovados, na forma da lei.”
A União criou uma interessante experiência com o Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), cuja segunda edição “ofertou 3.652 vagas para 32 órgãos, com provas aplicadas em dois dias — a primeira fase em outubro e a segunda em dezembro — em centenas de municípios de todo o país”. De acordo com a proposta, como se percebe, a adesão poderá ser feita somente aos concursos feitos pela União. Também nesta novidade haverá uma grande dificuldade: conectar um concurso unificado com as diversas carreiras públicas existentes nos estados e municípios, garantindo que o concurso avalie conhecimentos e habilidades estritamente necessários para o desempenho das respectivas atribuições de cada um dos cargos.
A uniformização de critérios pode prejudicar as especificidades locais, previstas legalmente na disciplina de cada um dos cargos. O ponto positivo é reconhecer que concursos realizados pela União geralmente são mais bem organizados — inclusive em razão da existência de mais normas regulamentadoras — do que aqueles feitos por municípios, por exemplo.
Ingresso na carreira
Finalmente, foi apresentada a possibilidade de que o ingresso inicial na carreira seja feito em nível intermediário, quando necessária a admissão de profissionais com maior especialização e experiência profissional. Trata-se mais uma inovação interessante, que esbarrará em uma dificuldade prática: a dificuldade de construção de carreiras que contemplem níveis ou classes que sejam acessíveis não somente pela passagem do tempo, mas por especialização e experiência. A construção de uma carreira voltada à prestação de serviços públicos eficientes e eficazes, com resultados aferíveis, não pode se limitar a incentivos financeiros.
Este primeiro ensaio teve a singela pretensão de comentar as propostas contidas na PEC 38/2025 que possuem relação direta com os concursos públicos. O texto apresentado possui impactos muito maiores, e a discussão legislativa certamente alterará muito do que foi aqui exposto. Confesso ao prezado leitor e à prezada leitora que prefiro esperar o desenrolar das discussões — e da eventual aprovação da proposta — para tratar do assunto com a profundidade merecida. Como canta mais uma vez Lulu Santos, “se isso for algum defeito, por mim tudo bem”!
[1] “Art.37. […] II-A – o concurso público para investidura em cargo efetivo ou emprego público deverá ser precedido de dimensionamento do quadro de pessoal, priorizar carreiras transversais e estar acompanhado de justificativas que comprovem a necessidade das contratações para o alcance dos objetivos e metas do órgão ou entidade pública previstos no planejamento estratégico para resultados e no acordo de resultados”.
Fonte: Conjur

